Que pensem na minha saúde como pensam no meu carro!

Que pensem na minha saúde como pensam no meu carro!

Quando as pessoas ou as empresas compram um carro, umcomputador ou uma televisão, pagamos um valor definido e único pelo bem e nãopor cada peça que foi utilizada para sua fabricação. Por outro lado, se meoferecessem as peças que formam o carro, pagando por cada uma, por cada pneu,porca ou chip a preços de mercado, e seu eu não desistir antes, podem tercerteza, pagaria por no mínimo 10x mais pelo conjunto de peças do que pagariapelo carro montado e pronto para dirigir.

Esta analogia está muito próxima do que acontece na saúde. Amaioria dos planos de saúde ou empresas compram porcas e parafusos, isto é,procedimentos como consultas, exames de sangue, cirurgias, ressonâncias etc. junto auma miríade de fornecedores (médicos, hospitais laboratórios etc.).

Como não tem claro o que efetivamente irão obter no final decada episódio de saúde – de fato, não há grandes preocupações com isso – passama maior parte do tempo em discussões de detalhes que na indústria seriainaceitável.  Se assim fosse, teríamosverdadeiros Frankensteins circulando pelas ruas, pois não existiria preocupaçãocom a questão de como seria o carro ao final, após conectarmos tudo que foiadquirido isoladamente (peças ou grupos de peças).  Poderíamos ter um carro com uma carroceria deuma Ferrari, um motor 1.0 e um sistema de frenagem de um Scania, por exemplo. 

Do outro lado, os prestadores, como laboratórios, médicos ehospitais, procuram melhorar e otimizar seus resultados (seja qualidade,lucratividade ou mesmo humanização) porém, sempre dentro do limitado escopo quevendem, isto é, procedimentos. Por conseguinte, todos trabalham com o foco emobter os maiores resultados e qualidade no seu microcosmo: por exemplo, ofabricante de equipamentos vende equipamento de ressonância com funções esofisticação muito além das necessidades e expectativas, o hospital realizacirurgias com o que há de mais sofisticado, laboratórios realizam coletas deexames em locais que parecem um hotel de luxo etc.  Esse modelo traz um resultado onde a soma doscustos dos procedimentos de um tratamento é maior do que deveria custar, istoé, por mais estranho que pareça, a soma das partes é muito maior que o todo.

No sistema de saúde, os nossos carros são os episódios desaúde.  Episódio de saúde inicia quandouma pessoa é diagnosticada com um problema de saúde e termina somente com a suatotal recuperação ou estabilização de sua saúde. Um bom exemplo seria umacirurgia bariátrica: a partir do momento da decisão pelo procedimento temos apreparação psicológica, adequação prévia da alimentação, internação, cirurgia,estabilização, acompanhamento pós-alta por psicólogo e médico e, por fim, aestabilidade de sua saúde. Esse episódio pode durar 11 meses até o totalequilíbrio do paciente. 

Seria bom senso comprar o carro inteiro para esta jornada. Isto é,pagar um valor mensal durante os 11 meses para o prestador ou grupo deprestadores envolvidos. Mas, ao invés disso, o que é feito: ignoramos 10 meses,29 dias e 22 horas e negociamos à exaustão 2 horas de cirurgia, e o restantedas “peças” compramos aos poucos, sem discutir como se encaixam.

Essa situação leva à realidade dosistema atual: de um lado, prestadores oferecendo maior qualidade deprocedimentos (peças), no maior preço possível. De outro, pagadores que buscam,cada vez mais, somente o menor custo.  

Voltando à nossa analogia, nósignoramos que, se comprássemos o carro completo o custo total ficaria pelomenos dez vezes mais barato, todos teriam lucro pois não existiria a hipertrofiadesnecessária no design de cada peça (ou na execução de cada procedimento).

Não acredito que o ecossistema de saúdepague dez vezes o valor do episódio comprando “peças”, mas com certeza essesistema que aí está paga bem mais do que seria razoável caso comprássemosepisódios. E isso não passa por questões como fee-for-service ououtros modelos de pagamento, e sim pelo objeto que está sendo pago:procedimentos. 

Há algumas décadas modelos baseadosem bundled payment for episodes (modelos de pagamentosagrupados ou “empacotados” em episódios) florescem no Canadá, nos EstadosUnidos e na Europa.  Por que não no Brasil?   

Tanto o lado pagador como o lado dosprestadores precisam se preparar para novos modelos de relacionamento, e umexcelente começo pode ser bundled payment for episodes. Sabemos quesua aplicação em um ambiente tão complexo e reducionista não é simples, masprecisamos avançar em direção a novos paradigmas. 

Por tudo isso quero ser tratado como aindústria automobilística trata meu carro! Não é apenas uma questãofinanceira, mas um imperativo de qualidade e racionalidade.

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